O que nos dá a burca?
Em França, onde ao contrário de Portugal o problema das burcas é uma realidade, pretende-se agora legislar no sentido de as banir do país - mesquitas e casas particulares excluídas, naturalmente. Parece ser quase unânime na blogosfera lusa considerar que as burcas são um problema, são desde logo uma manifestação extrema de fanatismo religioso - rejeitada por uma vasta maioria de crentes muçulmanos por todo o mundo, as suas origens estão de resto limitadas ao Afeganistão e partes do Paquistão.
E criam problemas óbvios de segurança ao permitir que alguém, ao abrigo da liberdade religiosa - muito embora alguns teólogos islâmicos argumentem que nada há de religioso na burca, dado que nem sequer é referida no Alcorão - possa entrar em bancos, escolas, transportes públicos etc. com o rosto e corpo completamente ocultos, podendo-se apenas ficar com uma ideia da altura da pessoa que a usa.
Olhando para o parágrafo anterior creio que fica claro que esta discussão sobre se é legítimo ou não banir a burca não existiria se em vez de mulheres muçulmanas fossem, por exemplo, homens evangélicos a usa-la. A discussão está minada por uma série de preconceitos e complexos sobre o islão e imigração, e paralelismos infelizes com outras minorias e direitos de minorias.
Como se usar uma burca fosse algo inato na pessoa que a usa, como se despir essa pessoa da burca fosse despi-la da sua crença, como se exigir algo tão simples e óbvio - que se exige a toda a gente na generalidade das sociedades mundiais - ter o rosto destapado quando nos dirigimos a alguém, pudesse subitamente transformar-se numa terrível violação da liberdade individual. Como se a liberdade individual fosse um valor absoluto. Como se uso de objetos nunca tivesse sido legislado antes.
Porque é disso que falamos, do uso particular de um objeto em particular. Fazer disto paralelismos com casamento entre pessoas do mesmo sexo, como já li, é no mínimo insultuoso para gays e lésbicas. Tratar isto como simétrico da obrigatoriedade (aplicada à lei da bala) de usar burca durante o regime talibã no Afeganistão é insultuoso para quem profere semelhante disparate.
Se queremos fazer paralelismos entre esta possibilidade legislativa e outras, podemos facilmente encontra-los na proibição do nudismo, muitas vezes punido com pena de prisão em várias democracias do mundo, apesar de neste caso não existir qualquer problema de identificação da pessoa. Podemos falar da proibição nas cidades francesas das pessoas andarem em tronco nu na rua. Podemos falar da proibição alemã do uso de fardas e outros símbolos nazis. E saindo do plano do vestuário, podemos falar por exemplo da obrigatoriedade de votar em países como o Luxemburgo, ou da obrigatoriedade de estudarmos até ao 12.º ano de escolaridade em Portugal.
Tudo exemplos de limitações da liberdade individual, que se entenderam como justificáveis por implicarem a criação de algum bem comum, evitar alguns males ou simplesmente não mexer com alguns hábitos e tradições (fraco argumento, mas suficiente para coisas inócuas).
Voltemos então às burcas. São elas uma tradição em França? De todo, são importação muito recente. São elas um mal? Como referi no início do texto parece isso ser uma conclusão unânime na blogosfera lusa, pelo que escuso de aprofundar esse aspeto. Criam elas algum bem para a sociedade? É a sociedade mais aberta e tolerante por permitir burcas? Haverá mais diálogo intercultural? Facilitará a integração de alguém? Reforça a cidadania?
Depois de muito ler sobre o assunto, ainda não encontrei uma única resposta positiva a estas perguntas.
PS: O texto está sem links não só por preguiça, mas sobretudo por não ser uma resposta a ninguém em particular, antes a pensar em vários argumentos lidos aqui e ali, no entanto onde mais tenho acompanhado e participado na discussão é no Jugular, onde encontrarão vários posts sobre o assunto, e claro, no Twitter.