domingo, janeiro 31, 2010

O que nos dá a burca?

Em França, onde ao contrário de Portugal o problema das burcas é uma realidade, pretende-se agora legislar no sentido de as banir do país - mesquitas e casas particulares excluídas, naturalmente. Parece ser quase unânime na blogosfera lusa considerar que as burcas são um problema, são desde logo uma manifestação extrema de fanatismo religioso - rejeitada por uma vasta maioria de crentes muçulmanos por todo o mundo, as suas origens estão de resto limitadas ao Afeganistão e partes do Paquistão.

E criam problemas óbvios de segurança ao permitir que alguém, ao abrigo da liberdade religiosa - muito embora alguns teólogos islâmicos argumentem que nada há de religioso na burca, dado que nem sequer é referida no Alcorão - possa entrar em bancos, escolas, transportes públicos etc. com o rosto e corpo completamente ocultos, podendo-se apenas ficar com uma ideia da altura da pessoa que a usa.

Olhando para o parágrafo anterior creio que fica claro que esta discussão sobre se é legítimo ou não banir a burca não existiria se em vez de mulheres muçulmanas fossem, por exemplo, homens evangélicos a usa-la. A discussão está minada por uma série de preconceitos e complexos sobre o islão e imigração, e paralelismos infelizes com outras minorias e direitos de minorias.

Como se usar uma burca fosse algo inato na pessoa que a usa, como se despir essa pessoa da burca fosse despi-la da sua crença, como se exigir algo tão simples e óbvio - que se exige a toda a gente na generalidade das sociedades mundiais - ter o rosto destapado quando nos dirigimos a alguém, pudesse subitamente transformar-se numa terrível violação da liberdade individual. Como se a liberdade individual fosse um valor absoluto. Como se uso de objetos nunca tivesse sido legislado antes.

Porque é disso que falamos, do uso particular de um objeto em particular. Fazer disto paralelismos com casamento entre pessoas do mesmo sexo, como já li, é no mínimo insultuoso para gays e lésbicas. Tratar isto como simétrico da obrigatoriedade (aplicada à lei da bala) de usar burca durante o regime talibã no Afeganistão é insultuoso para quem profere semelhante disparate.

Se queremos fazer paralelismos entre esta possibilidade legislativa e outras, podemos facilmente encontra-los na proibição do nudismo, muitas vezes punido com pena de prisão em várias democracias do mundo, apesar de neste caso não existir qualquer problema de identificação da pessoa. Podemos falar da proibição nas cidades francesas das pessoas andarem em tronco nu na rua. Podemos falar da proibição alemã do uso de fardas e outros símbolos nazis. E saindo do plano do vestuário, podemos falar por exemplo da obrigatoriedade de votar em países como o Luxemburgo, ou da obrigatoriedade de estudarmos até ao 12.º ano de escolaridade em Portugal.

Tudo exemplos de limitações da liberdade individual, que se entenderam como justificáveis por implicarem a criação de algum bem comum, evitar alguns males ou simplesmente não mexer com alguns hábitos e tradições (fraco argumento, mas suficiente para coisas inócuas).

Voltemos então às burcas. São elas uma tradição em França? De todo, são importação muito recente. São elas um mal? Como referi no início do texto parece isso ser uma conclusão unânime na blogosfera lusa, pelo que escuso de aprofundar esse aspeto. Criam elas algum bem para a sociedade? É a sociedade mais aberta e tolerante por permitir burcas? Haverá mais diálogo intercultural? Facilitará a integração de alguém? Reforça a cidadania?

Depois de muito ler sobre o assunto, ainda não encontrei uma única resposta positiva a estas perguntas.

PS: O texto está sem links não só por preguiça, mas sobretudo por não ser uma resposta a ninguém em particular, antes a pensar em vários argumentos lidos aqui e ali, no entanto onde mais tenho acompanhado e participado na discussão é no Jugular, onde encontrarão vários posts sobre o assunto, e claro, no Twitter.

3 comentários:

Inês Meneses disse...

Boss, dê-se a volta que se quiser a isto, esta lei é o regresso da discriminação cultural e religiosa às leis europeias, o regresso das leis específicas para controlar um ou outro grupo em particular. Não é nada surpreendente que surja em França. Nem que grande parte dos europeus ache que há boas razões. Tudo isto é velho de séculos. O ponto é de que lado da história queres estar.

R disse...

Era só o que faltava, o Estado decidir que símbolos religiosos se pode usar em público ou não.

O Estado tem direito a legislar no sentido de definir códigos de vestuário ou o que ofende a ordem a pública, mas não tem direito a legislar contra nenhum símbolo religioso em específico nem contra nenhum vestuário específico.

Se o problema é a cara tapada, que se legisle contra as caras tapadas, não contra a burka. Se o problema é as mulheres serem forçadas a usar a burka, legisle-se contra a violação da liberdade individual dessas mulheres e não contra a Burka.

Nenhum símbolo religioso ou outro pode, em momento algum, ser alvo específico de legislação individualizada. No caso dos símbolos associados a religiões chama-se separação de Igreja e Estado, e esta funciona para os dois lados. Mesmo para dar liberdade para o lado com que nós não simpatizamos.

Era só o que faltava, mais um atentado à nossa liberdade religiosa. E eu sou ateu!

Ary disse...

Boss,

Acho que você está sem paciencia já com a discussão hehe.

Mas de todo modo, vale a pena comentar. Queria saber a tua opinião ainda sobre alguns pontos:

-Parece que o uso da burca é mais importante para certos muçulmanos do que o nudismo ou o uso de simbolos nazistas, por exemplo, para os ocidentais. Acredito que ocorre um problema mais profundo e diferenciado do que as restrições à liberdade que você mencionou. Há, portanto, o uso particular de um bem cultural/social.

Parece que essas culturas acreditam que não usar a burca leva ao inferno ou algo parecido.

-Há ocorrências suficientes para suspeitar que as burcas prejudicam a segurança pública? Não seria isso um problema, como você mencionou, de medo do terrorismo ou algo parecido?

-O fato de essa cultura ser localizada em poucos países não retira, só por isso, sua legitimidade ou relevância relativa.

-Alguns muçulmanos acreditam que matar pode levar ao céu, outros que não usar a burca pode levar ao inferno. Acredito que a proibição de matar é sempre válida, mas não seria o uso voluntário da burca totalmente diferente? Algo que poderia ser deixado para a livre escolha das pessoas devido a ser uma restrição de caráter religioso?

-Se queremos que a comunidade islâmica trate com mais igualdade as mulheres, valerá a pena retirar-lhes a burca? Ou existirão outros métodos melhores?

- Se proibimos o uso da burca em razão de considerarmos isto contrário à dignidade da mulher, naõ estaríamos imitando os países islâmicos que obrigam seu uso pelo mesmo motivo?

-Uma questão que surge é: poderemos proteger as meninas muçulmanas que NÃO QUEREM usar? Apesar de ser tarefa difícil, creio que sim, já que também tentamos lidar com outros casos em que as crenças dos pais agridem a moral das crianças e adolescentes (em qualquer religião ou modo de vida}, ou mesmo com os ocultos casos de abuso sexual e violencia doméstica.

São elas uma tradição em França? - Para alguns, o apoio a homossexuais também não é. O recurso a tradição não deveria ser o mais acertado quando se trata de minorias.

São elas um mal? - Para muitos sim, contudo, para outros não. Aos que consideram o uso da burca realmente importante deveria ser propiciado o ambiente para tal. Deve ser dado também condições para que a escola e a comunidade verificarem abusos na prática cultural. Por exemplo, violencia doméstica ou abandono de adolescentes que se recusem a usar a burca.

Criam elas algum bem para a sociedade? É a sociedade mais aberta e tolerante por permitir burcas? Haverá mais diálogo intercultural? Facilitará a integração de alguém? Reforça a cidadania?

São perguntas difíceis. Mas creio que deve beneficiar pessoas que acreditem que o uso da burca é essencial e põe em risco o direito daqueles que não acham. Mas tal risco deve ser calculado e pode ser minimizado por outros mecanismos da sociedade ocidental.