quarta-feira, janeiro 09, 2008

Lei 37/2007: a pouco e pouco, a bandalheira

Retratos do Sul da Europa: Nápoles
«Os casinos da Estoril Sol vão estabelecer zonas para fumadores em todas as salas e nos restaurantes e reservam-se o direito de gerir quais e que percentagens destinar para o efeito, disse ao JN o presidente, Mário Assis Ferreira.

Este é o resultado prático do parecer dado ontem pelos membros do grupo técnico consultivo da lei do tabaco, que concluíram que nos casinos se combinam as leis do tabaco e do jogo, permitindo a criação de zonas para fumadores.
»
Perante isto várias dúvidas me assaltam. A lei da droga aplica-se aos casinos? E a do ruído? É que a lei do jogo é estranhamente omissa quanto a essas e outras matérias, e aparentemente é a única lei que vigora dentro das paredes dos casinos. A propósito disto, e bem ainda que por motivos errados, a Associação dos Bares do Porto pede a demissão de Francisco George, director-geral de saúde, que nos últimos dias vestiu a pele de juiz sem qualquer legitimidade para o fazer, ou sabedoria, tecendo as mais bizarras sentenças, como a referida.

Já são dois por demitir. Mas neste país sem vergonha os casinos são reis e senhores. Claro que os casinos podiam ter entrado na discussão da lei no Verão passado, e ter conseguido, de forma transparente, algumas excepções para as suas casas. Aliás, a lei 37/2007 é pródiga em excepções e facilitações várias, muito longe das mais recentes leis dos restantes países europeus (não haverá adjectivos para as classificar se um dia chegam também cá via Bruxelas, "fundamentalista", "talibã" e "fascista" já foram gastos com a actual). Mas nada disso foi feito, é mais fácil oferecer uma borla ao sr. ASAE e esperar que este procure um flash para onde esfumaçar a sua cigarrilha. Uma perfeita estupidez em qualquer estado de direito sério, um golpe de mestre em Portugal.

Mas o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. É uma lei que veio da tecnocracia, e não da esquerda, dos sindicatos e do governo (responsável pela nomeação dos dois senhores por demitir), como devia. É uma lei aprovada por unanimidade no parlamento, mas com vários dos seus deputados a chamarem-na "fundamentalista" logo a seguir. Mas neste país de faz de conta onde tão poucas coisas são para levar a sério, não o será certamente o parlamento. Seria a ASAE a valer-nos.

Assim nos convencemos, nós os apoiantes da lei (90% da população segundo algumas sondagens), que apesar de todos os pesares, a lei seria para cumprir. O balde de água fria veio logo na manhã do dia 1. O sr. ASAE, que construiu nos média a imagem do terrível e implacável zelador pelo cumprimento da mais obscura alínea de legislação comunitária, voltava-se agora para a defesa dos interesses dos casinos - usando, como de costume, os média. Começo da bandalheira.

Perante o desmazelo da ASAE, de resto deslegitimada para a função, vão pululando zonas de fumadores com uma reles ventoinha, muito superiores a 30% do total do espaço e sem qualquer separação da zona supostamente livre de fumo. "É o mercado a funcionar!" - gritam ululantes os pró-fumo (que não são, felizmente, todos os fumadores). Sem dúvida o mercado (essa suprema santidade), mas não só.

É óbvio que nenhum comerciante quer perder clientes, e logo, nenhum comerciante manda por dá cá aquela palha um cliente para a rua. E fumar em espaços públicos fechados é, por via da tradição, do hábito, do sempre-foi-assim, um "dá cá aquela palha". Mas só, rigorosamente só, por isso. Pois não há um único argumento racional, médico, científico ou higiénico, se quiserem, que legitime o fumo. Não há, só a tradição. A mesma que justifica pôr crianças de 5 anos a fumarem cigarros pelos reis em Mirandela. E tantas outras e piores coisas, "é tradição" ponto, está justificado o injustificável. E nisso se baseia a tradição de tolerar e conviver com o fumo, por mais incómodo seja.

É por isso que uma lei anti-fumo só funciona se for uma lei forte. Sobretudo se estivermos a falar de países onde o respeito pela lei está, contrariamente ao fumo, longe de ser uma tradição estabelecida. Uma lei frouxa, que deixe cobardemente a decisão nas mãos dos comerciantes - os tais sujeitos à tal lei do mercado de que o cliente tem sempre razão - é uma lei condenada a não produzir efeitos. Olhe-se para Espanha. A frouxidão do processo não conseguiu romper com a tradição de tolerância ao fumo, e este venceu.

O progresso implica ruptura com o passado. E um ar livre de fumo é, definitivamente e sob qualquer ângulo de visão, um progresso. Há portanto que romper com a tolerância com o fumo, e fazermos valer (já que os políticos se recusam) o nosso direito, esse sim, ao ar limpo. E a lei, mesmo com todas as suas falhas, não nos desprotege por completo. Podemos e devemos exigir o seu escrupuloso cumprimento. E podemos e devemos privilegiar os espaços 100% livres de fumo. É a melhor resposta às inflamadas declarações de boicote aos mesmos.

Fica publicada então esta resolução de ano novo: só entro em espaços 100% sem fumo. Não me interessa se a sala de fumo fica nas masmorras, se existe, não entro. Bem sei que tal implica, por exemplo, o total boicote à noite gay do Porto - oh horror, oh tragédia - mas estou certo que sobreviverei. Fazer de conta que se vive num país em progresso será certamente melhor que a triste acomodação à realidade.

13 comentários:

portugalgay disse...

caro boss... esse fundamentalismo anti-fumo é quase tão mau como o fundamentalismo pró-fumo... então não se vai à noite gay do Porto por isso?

Nem sequer ao Boys'R'Us onde um homem pode sem problema nenhum evitar *completamente* qualquer réstia de fumo e as mulheres apenas o sentirão quando forem à casa de banho...

Não teria sido melhor ir aos locais *primeiro* ver as respostas encontradas e falar depois?

jpt disse...

Que fundamentalismo, Boss. Eu sou fumador e concordo, no essencial, com a nova lei. Faço parte dos 90 %. Mas qual é o problema de haver salas ou espaços próprios para fumadores? Se o resto do espaço for livre de fumo, isso afecta nalguma coisa os não fumadores? Acho que estás a caír no totalitarismo higienista de que o MVA falou. Só faltou dizer que, na rua, mudas de passeio quando vires um fumador. O que se segue? Escondem-se as criancinhas? Tenho que fumar com a cabeça dentro dum saco de plástico, como acontece com o álcool nos USA? Tenho que usar um dístico na lapela com uma estrela de david, perdão, um cigarro aceso?
Como todo o fumo é cancerígeno, e não só o fumo do tabaco, espero pela proibição das lareiras (ainda por cima são anti-ecológicas), assadores de castanhas, choriços farinheiras e morcelas (além disso comer sangue é proibido pela bíblia), etc.

"não há um único argumento racional, médico, científico ou higiénico, se quiserem, que legitime o fumo".
Mas é preciso haver? Mas que raio de condição é esta? Alguém quer viver num mundo assim, com estas regras?

Cheira-me que tudo isto vai servir de desculpa para que o ar que respiremos seja ainda pior, tal como aconteceu nos aviões. Num destes dias, na zona dos restaurantes dum centro comercial, já sem fumadores, a fumarada que saía da casa dos hamburgers impestava o ambiente mais que o fumo de tabaco, antes desta lei.

jpt

Má ideia! disse...

bleargh! esta lei só me entra na cabeça invocando a saúde no local de trabalho, onde a questão da escolha não tem nada a ver com o gosto. É o único argumento que consigo dar a mim própria para a aceitar, e que absurdina completamente a questão dos casinos. Não acho minimamente degradante fumar á porta, acho que me posso habituar a isso, é como voltar ao liceu. Mas ó, que arrogância sobre o espaço público. O problema de quem está a tomar atitudes fundamentalistas como tu estás é não conseguires abordar os teus semelhantes cara a cara e fazer negociar a tua escolha, como tantas vezes, sem lei, e nos domicícios acontece. Portanto, chama-se a polícia.É pavor cultural, TUGOFOBIA. Acabei de chegar dum país que sobre todos os pontos de vida, fez "indiscutivelmente" :P mais progressos que este, onde encontras na maioria dos estabelecimentos um anuncio identico em cima das mesas a afirmar a que se prefere que não o faças, e no dia 1 corriam informações sobre as areas onde sim e onde não. Alguns restaurantes forneciam coletes de pelo à porta, numa espécie de boquinha simpática. Nada desde azedume D-E M-E-R-D-A!

Má ideia! disse...

*ps merda para a asae, não confio neles para a minha segurança. TUGOFOBIA. percebo, mas cuidado que as justificações querem-se justas ao que é humano. O nazismo, esse programa higienista moderno e racional...

bossito disse...

Fundamentalismo, nazismo... genocida, não? O meu boicote aos locais com fumo, como tento explicar no post, tem duas motivações principais: 1) a crescente bandalheira no cumprimento da actual lei (desconheço o caso do Boys, não fui lá este ano, nem tenciono ir), que faz com que existam ene salas de fumo a partir do qual ele se expande a todo o restante espaço e 2) uma forma de premiar os comerciantes que resistiram à tentação de agradar a todos em nome... não sei bem de quê, ditadura do fumo? (se me é permitido também usar excessos de linguagem). Prémio em resposta a todas essas declarações de boicote em sentido oposto e essas listinhas e roteirinhos de nicotina que os jornais têm publicado em estilo missão de salvamento.

No fundo, com este boicote, estarei só a fazer de conta que vivo na Escócia, Irlanda, Suécia, França ou Itália - países por certo para lá de nazis... Porque, oh horror, eu preferia uma lei igual à deles. É de anti-cristo, bem sei.

Valha a tolerância fumadora... baaah.

bossito disse...

Peço desculpa pela preguiça.. mas como há quem escreva e resuma a minha opinião melhor do que o que eu próprio o faria:

«LEI 37/2007: Deixou-me encantado, como é óbvio, a entrada em vigor da lei de protecção dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco (pois é disso que se trata, e não de uma perseguição aos fumadores, como por vezes se tenta fazer crer).

Contudo, trata-se de uma lei marcada por alguns aspectos singularmente asininos. A introdução de excepções (Artigo 5º) é injustificada. Se é consensual que o tabagismo passivo mata e incapacita, numa escala preocupante, como se compreende que a legislação continue a admitir a exposição involuntária ao fumo de trabalhadores e clientes? Só o desejo de agradar a gregos e troianos, esse inexpugnável atavismo do génio português, pode dar origem a aberrações deste género.»


É isto sem tirar nem pôr o que me ocorre sobre as excepções à lei.

bossito disse...

E para que não reste a menor dúvida do quão fundamentalista sou, cito-me e reafirmo:

«E para que fique claro o quão forte é a minha posição neste assunto (sim, eu sim, fascismo higienista etc e tal) adianto que (já que fiz uma declaração de voto na altura) se as eleições legislativas fossem hoje não votaria no Bloco de Esquerda, sendo as suas patetices em torno deste assunto uma das razões mais fortes para não o fazer. A luta pela saúde dos trabalhadores não pode ser hipotecada só porque colide com o cigarrinho dos deputados do Bloco.»

UMEU disse...

Nem tanto ao mar nem tanto à terra. É uma resolução sensata essa de ano novo, sensatez que advém apenas da facilidade em cumpri-la, graças à lei que foi aprovada. Sou fumador (é um direito que me assiste) e como tal gostaria de ter reais alternativas nos espaços que gosto de frequentar. A Lei não cria espaços para elas, essa é a verdade. Sinto-me discriminado. Não consigo entender esta locura que por aí vai, essa fobia irracional desta nova "peste", a forma como tantos não fumantes se agarraram bem mandados, sem reflectir seriamente, ao argumento atirado às massas da "protecção" dos não fumadores, que parece ter sido tão bem inculdado na cabecinha das mentes portuguesas para justificar a intolerância do que acaba de ser feito.
Se a verdade fosse essa não seria tão ou mais eficaz restringir a circulação automóvel ? Promover o acesso generalizado a bons cuidados de saúde ?
Que pena ter passado por aqui e ter lido o que li. Esperava outro tipo de considerações. Depois venham falar em direitos das minorias, tolerância.
Cumprimentos.

bossito disse...

ó sim.. comparemos o incomparável, se não toleras o meu fumo caladinho não me venhas dizer que queres casar com o teu namorado... *vómitos*

Esta lei não discrimina ninguém, já que todos estão igualmente proibidos de fumarem em determinados locais. Não posso eu, nem pode você - é igual para os dois. Quanto à existência de mais espaços para fumadores, pois a lei é extremamente facilitadora, como não o é nenhuma lei europeia aprovada nos últimos 5 anos à excepção da espanhola. Acontece que, oh surpresa, porque será?, a maioria dos comerciantes optou por proibir o fumo nos seus espaços. Bem sei que todos dizem aos seus clientes fumadores que "os ventiladores são muito caros" etc, mas não seja ingénuo, a verdade é que há anos que a maioria sonhava com um espaço livre de fumo, mas sozinhos dificilmente poderiam correr o risco de avançar com a proibição, esta lei caiu-lhes do céu!

Finalmente, não há nada de dramático ou intolerante em não se poder fumar num edifício, há ene coisas que não se podem fazer nos edifícios muito mais difíceis de justificar. P.ex. não pode fazer nudismo num supermercado, nem na rua aliás! Barulho nem em sua casa pode fazer. Etc etc etc etc etc etc etc etc. O que aqui me parece dramático é que haja tanta gente que se sente obrigada a subir e descer escadas, a enfrentar chuva e frio, para fumar. Isso sim é estranho e ditatorial. Não é a lei que é intolerante com os fumadores, ninguém está impedido de fumar, é o tabaco que não vos deixa viver em paz... e vos obriga a consumi-lo sempre, dê por onde der.

Má ideia! disse...

humpf, chamo nazi à situação em que há um controlo ESTATAL centrado na ideia de corpo ADEQUADO, simplesmente porque é o movimento moderno inaugural dessa tendencia, cujos genocídios foram sintomas, mas não a doença.

para deixar de fumar tem que se mudar de estilo de vida. Para se deixar de estar exposto, tem que se mudar de estilo de vida. Pesar os dois na balança é tricky, acusar de genocídio (yeap, morte passiva) é tricky. Comparar-se a um modelo nordico é tricky (eu falava da alemanha, mas da maneira como as pessoas que lá vivem se estavam a comportar, não do modelo, e ainda aqui, é o teu discurso |raivoso| que me interessa)

bossito disse...

A minha raiva é contra este "deixa andar" que nos é tão típico que impede a aplicação com um mínimo de rigor de uma lei já de si branda, frouxa e ultrapassada em relação à norma europeia. É contra isso que me enraiveço. Um país incapaz de produzir, aplicar e respeitar as leis não é um país, é um circo.

É claro que há questões muito mais importantes do que esta, mas é um exemplo perfeito e recente que ilustra a bandalheira geral, a desresponsabilização, a justiça para ricos versus a justiça para pobres, a arbitrariedade das punições, a incapacidade de alterar hábitos justificáveis apenas por serem hábitos com vista a um bem comum.. enfim, é por isso que em enraiveço, sim.

Quanto ao resto é como digo, mil e uma regulamentações e proibições muito mais invasivas e difíceis de justificar.. e sem 1 milésimo da oposição. Quem disse que a dependência por um tóxico não pode estimular o activismo político?

jpt disse...

"Não é a lei que é intolerante com os fumadores, ninguém está impedido de fumar, é o tabaco que não vos deixa viver em paz... e vos obriga a consumi-lo sempre, dê por onde der."

Fumo porque quero e dispenso este tipo de moralismo. Já agora, não é a lei do casamento que está mal, é o "vício" que impede os gays de se casarem com pessoas do outro sexo? Tentarmos ver o outro lado, colocando-nos na posição do "outro", é uma medida básica de higienismo mental.

bossito disse...

Mas qual moralismo? Acho que cada um deve fazer o quer e lhe apeteça, desde que dentro das normas que a sociedade vá definindo claro. Nada contra o que não me prejudica. Ponhamo-nos todos no lugar dos outros sim.

Deve alguém que está ao meu lado levar com o fumo em cima só porque me apetece fumar? É este "pôr no lugar do outro" que falhou ao longo de séculos, e torna leis como esta necessárias. Mas de resto, moralismo algum JPT, acho óptimo que só fumes porque queres e quando queres. Com esse auto-controlo não terás qualquer problema em viver com esta lei. Mas não é isso que se sente em muitos fumadores, para quem fumar não é definitivamente uma actividade executada livremente, mas antes por obrigação fisiológica. Mas tudo bem também, desde que essa obrigação não se transforme em problema meu, como acontecia várias vezes antes da 37/2007.